quarta-feira, 3 de abril de 2013

Uma carta meio confusa

      Tem um conto do Borges -talvez um relato verídico, vai saber- em que ele senta ao lado de um homem a beira do rio e se dá conta de que o outro é ele mesmo, muitos anos mais novo. E então é tomado primeiro de estranhamento, depois de uma vontade urgente de prevenir sobre o futuro e, por fim, da serenidade de que o que há de ser, será, e que seja. Uma boa história, me pego pensando nela.
      Se bem me lembro, você deve ser agora um menino tímido, de pouca conversa e muita imaginação. Deve estar relendo alguma parte do Sinbad -se não me engano, é da terceira viagem que gosta mais- ou folheando um volume qualquer da enciclopédia. Um menino meio constrangido por gostar de folhear enciclopédias no tapete da sala.
      Já eu estou aqui, ainda tímido e de pouca conversa. Esperei o prédio inteiro ficar quieto para tomar um copo de chá e ouvir um concerto do Beethoven. Meio constrangido por gostar de ouvir música clássica no trabalho. As coisas mudam, mas a gente não.
      Daqui a pouco será meia-noite: dia de aniversário. Sendo meio dramático, é o trigésimo inverno. Sentado diante das estantes onde já não cabem mais livros mas se vai dando um jeito de empilhar,  posso ouvir minha (nossa?) mulher dormir no quarto em frente. Tenho aprendido a silenciar para ouví-la.
      Quando fizer trinta anos, daqui a pouquinho, você será assim: um sujeito meio calado, pensativo talvez além da conta, um homem cheio de "meios" e "talvezes" (com um tanto também de certezas, mas as certezas costumam ser mais silenciosas que as dúvidas).
      Veja você. Esses dias mesmo, a família estava toda reunida, umas vinte pessoas, um domingo de inverno sem uma nuvem no céu. Depois da sobremesa, você levou uma cadeira para o jardim e ficou ali, olhando de longe, como quem assiste a um filme bonito. E pensando que nunca mais verá aquilo novamente, que amanhã as coisas já não serão as mesmas, as pessoas serão diferentes, alguém talvez até esteja junto de Deus. E foi ficando tomado de uma ternura tão grande...
      É uma carta confusa, absolutamente desnecessária. Uma coisa até meio fútil. Mas, enfim, você será o tipo de sujeito que faz essas sentimentalidades de vez em quando. Talvez, em outra ocasião, eu escreva outra carta, vinte ou trinta anos mais velho, e sorria da minha ingenuidade.
      Para que ficar contando tudo se daqui a pouco você vê com seus olhos? A vida é agora, não é mesmo isso que estou tentando dizer?
      Pois tem gente que diz que o tempo corre, que mal brindou o novo ano e quando vê já é Natal. Também tem os que reclamam que os dias se arrastam e pedem que tudo passe logo de uma vez. Mas, sei lá, eu diria que durou o que deveria durar. Trinta anos que duraram exatamente o que deveriam durar, nem mais e nem menos. E isso é bom.
      De repente me deu uma vontade enorme, urgente, de agradecer. A vida é boa.
      Chegou a parte que você mais gosta do concerto. Meia-noite. Feliz aniversário.

— Bruno Palmas [http://acepipesescritos.blogspot.com.br/] 
Eu já disse o quanto eu amo esse blog? Não? Então fica registrado.

22 comentários:

  1. Muito lindo o texto, até me arrepiei *-* Então amei seu blog, seguindo viu flor. Segue de volta?

    L&V Shop Blog | L&V Shop - LOJA | FanPage | Twitter

    Beeijinhos flor ;**

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  2. Lindo! Principalmente o final. Não conhecia o blog do autor do texto, mas, caramba, Samyle, é mesmo incrível! Gostei bastante. Tô indo lá ler algumas coisas!
    Beijinhos

    Hipérboles
    @hiperbolismos

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    1. Haha, sou apaixonada pela escrita dele! Sabia que iam gostar ;)

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  3. muito lindo o texto, perfeito, me deu uma nostalgia, como se em algum momento pudesse comparar quem fui, a quem sou *.*

    minhaspequenasverdades.blogspot.com.br

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  4. Desde o começo do texto me prendeu,
    mas o final foi simplesmente o melhor \õ
    Amei amei!
    Lindo demais, daqueles que dão arrepios *-*

    Um beijo

    http://meninamsicaeflor.blogspot.com.br/

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    1. Me senti assim também, esse foi o primeiro texto que li dele e ainda estou extremamente apaixonada. Talvez o segundo melhor seja "Palavras cruzadas", ambos dão arrepios!

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  5. Que lindo texto! Não conhecia o blog, vou lá visitar!

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  6. Que lindo, Sa.
    Nunca tinha lido e também não conhecia o blog.
    Uma sutileza incrível nas palavras.
    Amei.

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  7. Me apaixonei pelo texto, verídico e tocante! Tratei de visitar o blog do autor e conhecer mais alguns rastros de sua escrita, gostei bastante da simplicidade de suas palavras.

    clandestina-a-bordo.blogspot.com

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  8. Ah! Quase ia me esquecendo: gosto bastante do seu blog, e não poderia deixar de listá-lo na postagem dos meus blogs favoritos!

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    1. Awwwn, obrigada! Queria ter mais tempo pra retribuir todo o carinho de vocês...

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  9. Amei o texto.
    Ainda não conhecia o teu blog, e fuçando por aí vim parar aqui,rs. Gostei bastante e me identifiquei com teu blog.
    Beijos,
    Devaneios

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    1. Que bom que gostou, volte sempre, querida, e seja bem-vinda!

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  10. por um instante achei que o conto fosse seu
    curti e já estou seguindo o link...
    »»» Emilie Escreve

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  11. Entendo porque gostas deste blogue.
    Texto interessante.

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  12. Oi, tem post novo lá no blog.

    Tem muitas novidades nessa semana, então se for seguir para ficar dentro das novidades. Comenta o post e avisa que está seguindo, que sigo de volta.

    SORTEIO NO BLOG | TUTORIAL DE MAKE RÁPIDO - YOUTUBE | FÃ PAGE

    Beijos, e me desculpe o incomodo. :*

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  13. Não existe coisa melhor do que ganhar parabéns meia noite!

    Beijos!
    @esteffanifontes, do blog Aos Dezesseis Anos
    aosdezesseisanos.blogspot.com.br

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  14. Que lindo! Fiquei até arrepiada. Com certeza vou ver o blog dele.
    Amei amei amei♥

    http://menina-do-sol.blogspot.com.br/

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  15. Legal o texto. Vou dar uma visitada no autor!
    Isso me lembra um texto meu, também sobre cartas à mim mesma. Curti a beça.
    Beijo!!!

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    1. Aaah, eu lembro dese seu texto! É ótimo, como não lembrar?

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  16. Adorei o texto, muito bom :)
    Sabe que acho incrível uma pessoa gostar música clássica! Tinha uma colega de cursinho que também gostava e, ainda fazia aula de canto lírico. Queria por demais!

    Tecido_Doce

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    1. Também acho incrível, infelizmente não conheço muitos... O mais perto de música clássica que estou chegando ultimamente é com a trilha sonora de O Fabuloso destino de Amelie Poulain ...

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