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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Me chamem de velha

   Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”.  Pensei: “roubaram a velhice”.  As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.
   Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.
   A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”. E eu insisti na resposta: “Eu quero viver a minha morte”.
   Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum.  Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.
   A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.
   Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor.  Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.
   Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua.  O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.
   Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está.  Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.
   Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.
   Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”?  Não. Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam...”.
   Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.
   Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem.  O tal do “espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando.  Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.
   Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.
   Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar.  É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.
   Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.
   Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.
— Eliane Brum
[texto presente no livro A menina quebrada]

sábado, 7 de setembro de 2013

A vida que ninguém vê

Título: A vida que Ninguém vê
Autora: Eliane Brum
Editora: Arquipélago Editorial
Páginas: 205

   Antes de tudo, devo dizer que esse livro é jornalistico.
   Porém, ao contrário do que nos habituamos a ver, como a catástrofe de Santa Maria, o terrorismo de 11 de setembro e a guerra na Síria, ele fala de pessoas que você provavelmente não conhece, como o menino do morro que já não pode andar, o carregador de malas do aeroporto que nunca voou, um homem que guardava o lixo a história de toda uma cidade e um macaco que fugiu da jaula e foi tomar uma no bar, e pessoas que você infelizmente já não poderá conhecer, como a menina que pedia esmola aos  carros e que morreu atropelada.
   Eliane se propõe a mostrar o jornalismo esquecido. A extraordinária vida ordinária, ou a vida ordinária extraordinária que, ao fim, a gente descobre que também é a de cada um.
Vemos o que todos veem e vemos o que nos programam para ver. Era, com toda pretensão que a vida merece, uma proposta de insurgência. Porque nada é mais transformador do que nos percebermos extraordinários - e não ordinários como toda a miopia do mundo nos leva a crer. Pág 188

terça-feira, 30 de julho de 2013

As pessoas quebram, Eliane Brum escreveu

Eliane Brum me conquistou com uma entrevista ao Jogo de Ideias que assisti procurando dicas de como escrever melhor. Ela não é uma pessoa comum, ela olha o que ninguém vê, descreve o que todo mundo sente de  modo que nunca havíamos sequer imaginado.
"O que eu poderia dizer a você, Catarina? A verdade? A verdade você já sabia, você tinha acabado de descobrir. As pessoas quebram."
Embora seja jornalista, foge ao sensacionalismo. Nada de homem que morde o cachorro, prefere o cachorro que morde o homem, o natural, o comum, como a morte - esse, aliás, é um dos temas mais presentes nas suas crônicas e reportagens. Preciso dizer que é a minha escritora/jornalista favorita? Poxa, ela me faz entrar no site da Época toda segunda pra ler seus textos.
Claro que eu não poderia deixar de apresentar seu mais novo trabalho, certo?
A menina quebrada - E outras colunas de Eliane Brum


Nas colunas da repórter Eliane Brum no site da revista Época, a vida pode ser tudo, menos rasa. A cada segunda-feira, os leitores encontram um olhar sobre o Brasil, sobre o mundo, sobre a vida - a de dentro e a de fora. Eliane pode escrever sobre a Amazônia profunda, como alguém que cobre a floresta desde os anos 90; ou pode provocar pais e filhos, com uma observação aguda das relações familiares marcadas pelo consumo; ou pode refletir sobre a ditadura da felicidade, que tanta infelicidade nos causa. O que não muda são a profundidade e a seriedade com que ela trata cada tema. O que não é surpresa é seu enorme talento para enxergar muito além do óbvio. Essa combinação transformou sua coluna de opinião em um fenômeno de audiência. Este livro reúne seus melhores textos e dá ao leitor uma fotografia do nosso tempo, visto pelo olhar de uma repórter que observa as ruas do mundo disposta a ver. E que escreve para desacomodar o olhar de quem a lê.
Confesso que tal sinopse não mexeu comigo. Já conhecia tudo o que foi descrito, só a certeza de ter uma obra de qualidade me fez adicionar esse livro aos vários nomes da minha lista de desejados. Mas peço que você pare um pouquinho e ouça o que a própria autora falou sobre ele. Apesar de o áudio não estar tão bom, ele vai mexer com você. Muito.

"Ser forte, Catarina, não é saber quebrar os outros. É saber quebrar."

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Ficção em Tópicos

    Antes de  tudo, venho me desculpar pelo sumiço. A festa de aniversário, os vários parentes vindo conhecer como é o lado frio de Pernambuco (é, minha família todo mora em estados distantes, por isso estou super empolgada pelo fato de ser a primeira vez que eles vêm me visitar, irão chegar na madrugada de quinta. Festas de aniversário juntam as pessoas!) e todos os simulados e testes me afastaram completamente do computador. Eu até estou com um texto pronto mas resolvi não publicá-lo agora, só semana que vem, trazendo uma indicação de um site super legal com ótimas dicas para quem escreve - qualquer coisa que seja.
    Como sabem, tenho o sonho de ser escritora, mas sou muito insegura Tentando melhorar, procurei um monte de coisas na internet que me ajudassem a superar esses meus problemas, porque quando penso que entendo bem de algo, simplesmente faço sem dar tanta importância. Foi assim que encontrei o Ficção em Tópicos.